A BICICLETA
Silio Jader
Sou um saudosista incorrigível. A cada momento me pilho navegando nas águas daqueles tempos que se foram mas não me largam. Tempos difíceis mas bons. Muito bons. Podemos até acrescentar que, simples como éramos, seríamos felizes se felicidade houvesse. Pelo menos a gente acreditava que havia mas, essa minha mania de duvidar dela já me rendeu a pecha de "negacionista" qualificativo muito em moda nesses tempos bicudos que atravessamos. Filósofos há, e houve, que concluíram que o homem - espécie - desde o seu aparecimento corre, desesperadamente, em busca da felicidade e nunca a alcança. É como se ela sorrisse no horizonte e, em desabalada carreira, ele ao chegar e quase tocá-la percebe que ela fugiu e está a acenar-lhe, com um sorriso maior, num horizonte mais longínquo como se dissesse: "alcance-me se você é capaz." Bem. Naquele tempo de vida simples, existindo ou não felicidade, todo mundo era feliz ou pelo menos fingia que era. Senão, nós que viemos de lá , não sonharíamos com uma máquina do tempo que nos permitisse retornar. Mas, como sonho é ficção mesmo, só conseguimos voltar lá em nossas recordações. Costumam me acusar que olho só no retrovisor. Claro! Experimentem dirigir sem olhar no retrovisor e me digam o que acontece.
Todos os dias eu, ao ir para a escola, passava pelo Bazar do Povo. A bicicleta estava lá exposta na calçada. Era a única à venda na pequena Salinas. Naquele tempo não havia fabricação de bicicletas no Brasil. Em nossa cidade, as poucas pessoas que tinham uma, faziam a aquisição nas cidades maiores, Montes Claros por exemplo, onde as lojas dispunham de modelos importados. Mas havia uma, à venda, fazia tempo, no referido bazar. Não me cansava; parava para examinar os mínimos detalhes e depois me afastava com um sonho. Ainda seria minha. Como comprá-la eu não sabia mas o desejo não me deixava e com a esperança renovada fazia planos no sentido de conseguir o dinheiro. Trabalhava em "bicos" variados como engraxar sapatos, vender revistas, revender produtos da feira e o que aparecesse. Quando saía para passar à porta do bazar, ia com o coração aos pulos, tenso só de pensar: e se tivesse sido vendida? E se ela não estivesse mais lá ? Mas sempre estava. Pretinha com pneus finos, brilhando e polida parecia lançar-me um convite , silencioso, para pedalá-la. Eu não sei que idade eu tinha. Talvez estivesse beirando os 9 anos.
Os bicos ajudavam na manutenção da família, de poucos recursos, e na medida do possível alguns trocados eram retidos com o objetivo de realizar o sonho. Às vezes conseguia faturar até 50 cruzeiros, por mês, e apesar de sobrar pouco não desistia. Frequentemente contava minhas economias feitas com garra e à custa de privações e avaliava quanto faltava. Era muito pois a bicicleta era cara para os meus padrões. O caminho era longo mas eu continuava firme. Partia para a luta convicto de que era uma questão de tempo. Trabalharia obstinadamente, esperaria com paciência, fossem dois, três, fossem quantos fossem os meses, jamais desistiria. A "bichinha" seria minha com toda certeza.
Naquele dia meu pai estivera com Maurinho, dono do bazar, no exato momento em que ele almoçava com sua irmã e sobrinho adolescente que residiam ao lado do estabelecimento. Eu me achava em casa no meu quarto contando o meu minguado dinheiro quando meu pai chegando à sala contígua onde minha mãe costurava, ouvi perfeitamente, narrou um fato que ele acabara de presenciar e que, segundo ele, foi mui engraçado. Bem no centro da farta mesa, contou ele, havia um vistoso prato de quiabo, com carne de sol, cujo aroma despertava o apetite de todos exceto de Orlando sobrinho presente, cuja mãe advertiu que ele detestava quiabo e sentia enjoo só de ouvir falar. O tio Maurinho vislumbrou então uma oportunidade de fazer uma brincadeira com Orlando propondo-lhe o seguinte desafio: - agucei meus ouvidos e meu pai continuou - se comesse todo o quiabo ganharia a bicicleta que estava encalhada no bazar. Orlando cujo pai podia comprar uma bicicleta para o filho mas, por alguma razão sempre negou a fazê-lo, não é de hoje que desejava uma, a princípio não acreditou mas logo percebeu que era para valer. Ante o olhar desconfiado do sobrinho Maurinho repetia: é só comer. Fácil não é ? Orlando pressionado pelo olhares atentos, mirava o prato à sua frente fungando, movimentava os talhares, tocava no prato, tamborilava os dedos, remexia na cadeira e com trejeitos faciais resmungava repetidamente: e a baba? E a baba? As pessoas presentes batiam palmas e gritavam, em coro: come, come, come! De repente o menino arregalou os olhos , travou da colher, encheu a boca e a baba lhe escorreu pelos lábios. Novos gritos: com a baba, com a baba! O olhar fuzilante do garoto passeou, fixando um por um em volta da mesa, pousou a colher, agarrou o prato com as duas mãos , e ato contínuo, devorou todo o conteúdo com baba e tudo. Respirou fundo e disse pronto! Foi aplaudido e recebeu parabéns pelo presente que acabara de ganhar. Não terminou o almoço. Saiu em disparada para se apossar da bicicleta. A narrativa do meu pai terminava aí. Desde o início eu ouvia com atenção e no desenrolar dela comecei a tremer, sentir calafrios, coração acelerando, com uma quentura a percorrer-me o corpo, faltando-me forças, paralisado com se tivesse sido acometido por algum mal. Voltei a mim e parti, como uma flecha, em desabalada carreira, alcancei a rua em direção ao bazar. Ofegante ao dobrar a esquina fixei a porta com o olhar ansioso. Ela não estava lá.
Hirto como uma estátua senti um nó a oprimir-me a garganta enquanto duas lágrimas mornas me aqueceram a face . E olhem que eu não era de chorar porque ainda acreditava naquela de que homem não chora. Retornei cabisbaixo. Quando passava por pequena ladeira de volta encontrei com Orlando que descia rodando macio em sua nova bicicleta.
Não pensem que me vi na pele de vítima. De jeito nenhum. Apesar de criança naquela época, sem o saber, eu já tinha adotado o conselho dos estoicos, , "aceita, dói menos". "Levantei, sacudi a poeira" e comecei a programar a nova estratégia que me levaria a bicicleta e, efetivamente, levou muitos anos depois. Foi só uma rasteira entre as inúmeras que a vida nos dá. Algumas bicicletas vieram na vida adulta, até os 30 anos de idade, quando prescindi delas ao adquirir meu primeiro automóvel.
Silio Jader Noronha Brito é Autodidata, nascido em Salinas
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