Este espaço é para você aprimorar a notícia, completando-a.
Clique aqui para exibir os comentários
Os dados aqui preenchidos serão exibidos. Todos os campos são obrigatórios
Mensagem: AS DOBRAS DO SINO Ivana Ferrante Rebello Uma capela pequena, de cores brancas e azuis, ergue-se em meio ao jardim da fazenda. Por ali, de qualquer lugar que se olhe, ela é vista. Antes que se iniciem os ofícios do dia, meu pai abre suas portas. Todas as manhãs. Essa capelinha, feita de tijolos e telhas, conta a mais bela história de nossa família. Seu projeto foi de Deus, sua argamassa foi de dor, suas tintas nasceram da fé. Essa é a história. Há cerca de vinte anos, meu pai, ao fazer uma cirurgia para retirada da vesícula, adquiriu hepatite medicamentosa, causada por um anestésico. Sua cor, sempre rosada, da velha cepa do português Jayme Rebello, passou a um amarelo ocre, que pintou seu corpo, da raiz dos cabelos ao fundo do olho. A doença, que minava sua energia e vigor, obrigou-nos a levá-lo a Belo Horizonte, para tratamento. O caso foi sério. Minha mãe e metade das irmãs seguiram com ele. A outra metade, como eu, ficou em casa, entre pranto e oração. Minha mãe é rezadeira, algumas filhas a puxaram. Eu, entre livros e literaturas, sou meio erradia – mulher de pouca religiosidade e muita esperança. Entretanto, a situação era grave. No hospital, a equipe especializada em problemas do fígado aventou a possiblidade de transplante, pois meu pai não reagia a medicamentos. Os exames diários assinalavam para taxas alteradas, cada vez piores. Ouvi termos que ficaram cúmplices de meus ouvidos leigos: transaminases, níveis de TGO e TGP... Ouvi o choro de todas nós. Seis filhas apaixonadas pelo pai; minha mãe, sua companheira de tantos anos. Minha irmã médica, acompanhando o caso de perto, foi a porta-voz da notícia: nosso pai, muito debilitado, não resistiria a um transplante. A medicina chegava a um momento em que não poderia fazer mais nada. Eu e as demais seguimos para a capital do estado aos prantos. Foi uma viagem de dor. Alternávamos no quarto do doente, permitindo o descanso noturno a mamãe, que não dormia no hospital. Durante os dias, ininterruptamente, ela se desvelou à cabeceira do marido. Quando uma das filhas chegava, ela corria à capela do hospital, debulhando seu inseparável terço. Numa manhã triste, minha irmã Cláudia acompanhava meu pai. Nunca o deixamos só, nem por um minuto. Eu, insone, ficava mais às noites. Somos seis filhas. Uma escadinha de mulheres valentes, criadas por meu pai para “nunca depender de marido” e por minha mãe para “trabalhar para terem o que quiserem”. Meus pais são pessoas de missas quase diárias, reflexões sobre o Evangelho e uma longa história de trabalho na igreja. Na nossa casa, as orações são frequentes. Assim, era hábito, no hospital, uma freira em serviço entrar e ministrar a ele a comunhão diária. Já se ia mais de um mês de internamento; estávamos todos abatidos. Naquela manhã, uma freira falante e vigorosa, após a oferta da comunhão a meu pai, perguntou a ele se tinha fé. Ele abriu os olhos e concordou. Conheço poucas pessoas no mundo com uma fé como a de meu pai. Ele entrega e espera. Enquanto chorávamos, abatidas pelo quadro grave de sua doença, ele sorria debilmente e rezava. Por isso, foi recebido com naturalidade o gesto de a freira colocar entre seus dedos uma medalhinha pequena, de Nossa Senhora das Graças: “Acredite! Ela vai curá-lo!” Meu pai balançou a cabeça, concordando. No dia seguinte, os primeiros exames mostraram significativa melhora. E, aos poucos, o quadro clínico do nosso pai foi melhorando. O médico que o acompanhava, sentou-se várias vezes conosco, para participar de nossas orações e alegria. Ele confessou à Regina, a médica da família, que não sabia explicar. Acontecia, dia a dia, um milagre. Devo enfatizar que, exceto eu, que escolhi o caminho da educação, todas as minhas irmãs são ligadas às áreas da saúde: uma médica e as demais farmacêuticas. Essas, seguiam com olhar de profissional as alterações positivas dos exames; eu, aceitava, feliz. Em oito dias, após a visita da freira, meu pai recebeu alta. Sua história foi contada nos corredores do hospital, muitos entraram em seu quarto para ouvi-lo, outras freiras vieram. Meu pai, na despedida, queria agradecer à freira piedosa, que lhe dera a medalha. Reunidas todas em sua presença, nenhuma estivera ali, naquele dia. E antes que pensem que tudo não passou de delírio de doente, lembro que, naquela manhã, quem o acompanhava era Cláudia, a que, entre nós, tem a mente mais alerta. Então, uma freira, trouxe um retrato. Meu pai e Cláudia a reconheceram. Tratava-se de uma freira há muito falecida, a irmã Catarina, que estivera naquela unidade hospitalar há várias décadas. Como explicar os fatos da vida? Essa é a história de minha família. Sempre a contamos. Meu pai, já recuperado, construiu a Capela de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, na fazenda Santa Clara. Ela está lá. Pequena capela, testemunho de pedra e de fé, cuidadosamente guardada por meu pai. Com as primeiras luzes da manhã, ele abre suas portas, e as fecha, assim que cai a noite. Para mim, esse gesto de meu pai é uma oração. Acreditam em milagres? Todos nós aprendemos a acreditar que a vida é um milagre. Quando nos reunimos para rezar, meu pai toca o sino. Sob as dobras do sino, a nossa história ainda está sendo contada. Meu pai, neste ano, completará 85 anos. Está lúcido e goza de boa saúde. Ele e mamãe comemoram, em setembro, 59 anos de um feliz casamento. A capela pequena, de cores brancas e azuis, ergue-se em meio ao jardim da fazenda. Sempre nos reunimos lá, nos momentos de júbilo ou de dor. É bálsamo e acolhida, em meio ao sol inclemente do sertão. Em meio ao canto dos pássaros e ao berro do boi, os sinos dobram. Eles dobram por todos nós.
Trocar letrasDigite as letras que aparecem na imagem acima