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montesclaros.com - Ano 25 - domingo, 22 de setembro de 2024
 

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Mensagem: MALUCOS-BELEZA O grande pinguço de minha aldeia foi Bem Pau Véio, de estatura elevada e traços finos, irmão de Santim, Sinval e Zé Amorim. Quando parava, por uns tempos, de beber, a abastada família o produzia com um belo terno de linho branco, gravata vermelha, camisa de seda e sapatos caros. Inesperadamente, dava uma recaída e virava um molambo. Vendia as roupas e os sapatos para golear. Aproximava-se das pessoas e ia logo dizendo: – Morreu, leão, eh, tigrão! Um alto funcionário do Banco do Brasil, Leão Cassulo, aporta em MOC. No primeiro dia de trabalho, indo o digno bancário à agência, cruza com Bem Pau Véio, que o encara e exclama: – Morreu, Leão! O homem quis deixar a cidade, na hora, não fossem os convincentes esclarecimentos dos colegas. A última vez que vi Geraldo Tatu ele já estava velhinho, mas com a mesma alegria, residindo numa casa de caridade. Conheci-o em minha infância. Sempre sorridente, com seus cabelos lisos, dentes falhos nicotinados, rosto magro e pálido, barba rala por fazer, dedos longos e unhas amareladas, Geraldo fumava sem parar e dava apenas três a quatro tragadas para consumir um cigarro. Cantava o “Ouvirundum”, o “Japonêis tem quatro fio”, “Chiquita bacana”, “Encosta sua cabecinha no meu ombro e chora” e muitas outras músicas da época. Quando não sabia toda a letra criava trechos e mesclava com os originais, simulando estar lendo o que cantava numa folha acinzentada, de papel de embrulhar pão. Após cada música balançava a cabeça como que buscando aprovação e aplausos, que sempre vinham efusivamente. Passada a cantoria, vinha um bom papo, regado a café grosso e imensas baforadas: – Geraldo, quantos anos cê tem? – Tenho trinta e cinco e doze ani, fora cinco qui eu mamei, fora deis qui eu morei na barriga de mamãe e fora treis qui eu tinha quando era piquene! – Onde cê mora, Geraldo? – Bem, é qui eu moro lá atrás da Fábrica de Óleo Mariprôsa (o nome era Mariflor). Aí ocê passa numa casa qui tem um tanto de cachorro, mas os cachorro num morde não e num é ainda lá qui eu moro não! Dispois ocê caminha cinco metro e vê uma casa qui tem uma arvre grande. Mas num é lá ainda qui eu moro não. Passa essa casa e encontra um monte de bosta de boi no caminho. Cuidado pra num pisá nela. Anda mais três casa e chega numa casa azul. Mas num é lá qui eu ainda moro não. Eu morria de medo de Requeijão. Soturno, grandalhão, longa barba e bigode espesso, vozeirão tonitruante, sempre carregando um saco às costas. Era só a meninada gritar “Requeijão” e ele soltava os mais feios nomes do vocabulário de então. O interessante é que ele gostava muito de requeijão. Chegava ao bar de Santim Amorim, na antiga Rua Quinze, apontava para a bandeja e exclamava: – Me dá logo um pedaço dessa disgraça, aí!!! Estava na Matriz e um gaiato o chamou pelo apelido. Levantou-se, fixou os olhos na figura e bradou, no meio da missa: – Olha aqui seu filha da puta, eu num te xingo agora di fi duma égua porque tô aqui dentro da Igreja, mas quando eu sair lá fora ocê me paga! Quinhento Pro Cadáver, o “Paulista”, residia num barracão, no bequinho, ao lado da antiga fábrica de tecidos, ali na Coronel Prates, perto da Santa Casa. Deve ter sofrido grande drama, porque vivia na mais absoluta solidão, amparado apenas, suponho, pela família de “seu” Meinardo, seu elegante e bondoso vizinho, que residia em frente à avenida. Seus cabelos, sedosos, eram cinzentos. Sua barba fechada, ponteada por fios embranquecidos, ora feita, ora por fazer, emoldurava um rosto fatigado e um olhar tenebroso. Fumava desbragadamente, ora cigarros, ora um cachimbo, e cuspia grosso. Seus dentes, escurecidos pela nicotina, eram grandes e pontiagudos. Sempre andava com um terno cinza, ora limpinho, ora sujo. Em certos dias, de lucidez, penso, limpava seu corpo, sua roupa e seus sapatos, para caminhar pelas ruas, usando uma gravata borboleta vermelha e um elegante chapéu cinza, relembrando o tempo em que fora feliz e saudável. Tinha uma doença crônica nas pernas. Seus passos eram milimétricos. Andava com o corpo inclinado para baixo. Gastava horas para fazer o percurso, de menos de um quilômetro, de seu barracão até o antigo mercado da Praça Dr. Carlos. E a meninada, ao vê-lo passar, gritava, em coro, para irritá-lo: Quinhento pro Cadáver!!! E recebia de volta os mais requintados xingamentos daquele moribundo que mal conseguia se manter nas próprias pernas e erguer a cabeça, especialmente nesses momentos de extrema ira. Com o tempo passou a usar uma bengala, o que impedia a garotada de aproximar-se de seu débil corpo para provocá-lo. Minha mãe fala muito num tal de “Sacudo”, mas desse eu não me lembro. Tenho vagas lembranças de Lalaô, renomado pintor. A meninada cantava: alalaô, ô, ô, ô, ô, ô, ô! E vinha a resposta: é a puta que pariu, riu, riu, riu, riu, riu, riu! De João Doido sei apenas um caso. Ele comprou um pastel no Bar de “seu” Tito, na Governador Valadares com Simeão Ribeiro. Saiu do bar e retornou logo depois, querendo devolvê-lo e receber o dinheiro de volta, alegando que não tinha carne. “Seu” Tito não aceitou seus argumentos e ele deixou o bar esbravejando: – Comprei um pastel no bar de “seu” Tito. O pastel não tinha carne. “Seu” Tito não quis devolver meu dinheiro. “Seu” Tito é ladrão. Betão já foi dos mais modernos. Um negrão de quase dois metros de altura, protegido pela turma das casas de peças de automóveis, da região da Praça de Esportes. Andava, a caráter, pela cidade, conduzindo seu carrinho de madeira, com pequenas rodas de borracha e um imenso volante. Parava o trânsito. Dava sinal para os carros e ai de quem lhe tolhesse as caminhadas! A buzina vinha de sua voz, alta e grossa. Marrecão era protegido de “seu” Antônio Reino, da Sorveteria, e não importunava ninguém. Muito alto e desengonçado, costumava frequentar reuniões de nossa Câmara Municipal e dar palpites do plenário. Das mulheres me recordo de Mila e Lena Doida. Mila, quando provocada, levantava a saia e mostrava suas intimidades às pessoas. Lena era mais comedida. Engravidava quase todo ano. Frequentava o Bar de Zim Bolão. Uma vez ela foi ao Cine São Luiz ver o filme “Cabaré Mineiro”, de Carlos Alberto Prates Correia. Eu fizera uma ponta, como figurante. Quando me viu na tela Lena aprontou o maior escarcéu, gritando, várias vezes, mesmo depois da cena: Augustão Bala Doce! Gaguinho é o apelido de Felício Fernandes. Jogava futebol na ponta-esquerda. Era assíduo frequentador da Sapataria Nossa Senhora de Fátima, de Tião Boi. Semianalfabeto, um dia deu uma de poeta e recitou: “Tu, não seja já. Vem, vírgola, Ó parte omana. Me chama Judite, Me chama Zabelê. E vem sabeá. E ponto final.” Choveram entusiásticos aplausos. Recentemente o revi no Café Galo e ele, a meu pedido, recitou esse indecifrável único poema de sua vida, sem nome e sentido. E para terminar, recordo-me de um vizinho de nossa aldeia. Era o famoso Leonel do Pé de Café, de Coração de Jesus. Vinha a Montes Claros, aos sábados, e seu ponto predileto era a vendinha de Orácio, na Av. Afonso Pena, quase com Presidente Vargas. Pedia uma banana e uma pinga, pagava adiantado e as degustava. Depois falava, com língua presa e voz tonitruante: – Cunstruí um roporto ni Coração de Jesuzi sumana passada. Gastei dois bilão de doles, por segundio!!! Cês num ouviu o barúio do Consteleicho, zuando no céu? Tava ino inaugurá. Foi um festão. Trezentas mil pessoa pru minutcho! O Prisidente da República, Getuio Varga, cumeu pequi qui nem uma mula! Até passô mar o coitado! Pegou um piriri danado. De todos esses malucos-beleza o único que ainda sei estar vivo, para minha alegria, é Gaguinho. Mas tenho certeza de que, especialmente os aldeões de minha geração, prantearam os que partiram, na esperança de que eles tenham encontrado, numa linda estrela, a paz que não tiveram entre nós.

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